Café com Gentileza: “Para mim não é difícil ser uma pessoa com deficiência, é difícil lidar com as pessoas que não sabem o que é uma pessoa com deficiência.”

Paula Rosa Campos
20 min readOct 17, 2021
Photo by Polina Kovaleva from Pexels

A deficiência é a maior minoria do mundo, e a única minoria que engloba todas as minorias. Qualquer pessoa em qualquer momento da vida pode passar a fazer parte. Então, será que precisaremos entrar para esse grupo para falar sobre isso?

Setembro é o mês para repensar o lugar das pessoas com deficiência na sociedade, e é também o início da primavera, a estação do florescimento, que assim como na natureza deseja alimentar a esperança na capacidade de cada um de ser flor, ter melhores condições e direitos.

Todo mês que se celebra algo é um convite. Como o mês que passou te transformou? Te convido a refletir sobre o real propósito do mês dedicado às pessoas com deficiência.

Sexta edição do “Café com Gentileza” com bastante satisfação de receber duas convidadas muito especiais e desde então admiradas por mim. Desfrutem dessa contribuição incrível! Duas pessoas que estão à frente de uma pauta urgente e necessária para o nosso avanço como humanidade.

Primeiramente, podem se apresentar?

Anamaria:Olá sou Anamaria, mais conhecida como Aninha, sou mulher com deficiência há 25 anos, tenho artrite reumatoide juvenil e com isso eu tive que fazer algumas cirurgias na minha vida para ter prótese no quadril e há 6 anos eu faço uso de muletas para andar. Sou caçula de 3 irmãos homens, sou terapeuta ocupacional, tenho formação em coaching, e hoje eu atuo como analista de diversidade em uma multinacional de tecnologia.”

Luciana: “Olá, meu nome é Luciana, eu sou uma mulher com deficiência, sou branca, heterosexual, e sou formada em psicologia e fiz mestrado e doutorado em sociologia. Eu parei de andar com 13 anos de idade em uma cirurgia para correção de escoliose e desde então eu uso cadeira de rodas. Quando eu me formei eu trabalhei na prefeitura de Betim com educação inclusiva durante 10 meses e logo em seguida fui chamada para o TJMG. Trabalho com psicologia, em formação de pessoas e atualmente estou na área de planejamento educacional.”

Qual a importância de se comemorar o mês das pessoas com deficiência?

Luciana: “É principalmente chamar atenção para esse público e para essa população. A gente não tem muitas ações positivas de divulgação, principalmente na mídia. Voltou a atenção para discutir aquilo que precisa ser discutido em sociedade. É uma oportunidade de trazer ao foco vários assuntos, principalmente porque como não é um assunto muito discutido durante os outros meses, nesse mês abre-se um espaço para isso.”

Anamaria: “A visibilidade é extremamente importante, e quando a gente olha para pessoas com deficiência e fala de comemorar o mês, na verdade é sobre reforçar nossas lutas por direitos e a importância que a gente precisa ter no mundo também. Dar visibilidade a pessoas com deficiência que são tão pouco vistas. O setembro verde, não é nem conhecido por muitas pessoas, principalmente as que não convivem ou são pessoas sem deficiência. Isso chama atenção! Quando você usa o mês inteiro para falar disso reforça a luta, a causa de visibilidade para mostrar que somos cidadãos de direitos também.”

Pela pesquisa nacional, hoje no Brasil temos 17,3 milhões de pessoas com deficiência, o que representa quase 8,4% da população (PNS 2019). A informação de 1 a cada 4 pessoas no Brasil não é uma informação atualizada(censo de 2000), apesar de amplamente divulgada. Não tivemos o censo de 2020, portanto não temos, dentro dos parâmetros do censo, essa informação. O censo foi atualizado considerando as regras da CIF e do que é considerado em outros países para ser possível comparar.

Qual a realidade das pessoas com deficiência hoje no Brasil? O que é ser uma pessoa com deficiência?

Anamaria: “Bom, é difícil generalizar, mas a realidade da pessoa com deficiência no Brasil não é fácil. Se a gente pensar nas barreiras atitudinais, físicas para todos os tipos de deficiência, de comunicação, a gente está sempre esbarrando em alguma dessas barreiras no dia a dia. Para mim não é difícil ser uma pessoa com deficiência, é difícil lidar com as pessoas que não sabem o que é uma pessoa com deficiência, com o comportamento dessas pessoas, os vieses que eles têm em relação a nós. Hoje eu já não me enxergo mais como uma pessoa sem deficiência, mas ao mesmo tempo é muito difícil todos os dias ter que explicar o que é ser uma pessoa com deficiência, porque você precisa do carro para locomover no bairro que mora porque não tem acessibilidade, porque as políticas são tão ruins e estamos perdendo cada vez mais nossos direitos.

É uma luta diária, é muito difícil ser pessoa com deficiência no Brasil.”

Luciana: “Pela pesquisa o que eu vejo de realidade relacionado a pessoas com deficiência é horrível, primeiro relacionado a pobreza. A maioria das pessoas com deficiência tendem a permanecer na pobreza, quem está tende a permanecer, e a pobreza produz a deficiência, através da falta de políticas públicas, serviço em saúde, saneamento básico em domicílio, violência. Não tem tantas pesquisas relacionadas a causas das deficiência no Brasil, mas no Hospital Sarah em 2017 foi feita uma pesquisa que apresentou o seguinte resultado: entre as pessoas que tinham alguma lesão medular, em primeiro lugar acidente de moto, a segunda maior causa entre os homens era bala nas costas. Essa é uma questão que perpassa a pobreza, vulnerabilidade, violência, ação policial. Quem morre em conflito armado no Brasil? Não é difícil imaginar a cor dos pacientes, mesmo não tendo esses dados explícitos na pesquisa, geralmente são jovens negros, quem morre e quem sobrevive. Para homens, bala nas costas e para as mulheres, a violência doméstica.

Essa questão perpassa vários pontos.

Isso que a Aninha falou de ser difícil viver, conviver todo dia de ser uma luta diária, isso começa desde a esfera familiar, onde nem sempre pais, mães, irmãos, tios e avós, que não tem uma boa expectativa de vida com relação ao nosso progresso da vida, estudo, trabalho. A realidade brasileira para mim é muita coisa. Das pessoas identificadas na PNS 2019, quase 80% não tem instrução e somente 5% com educação superior.”

Aninha: “E tem outra coisa, o fato de nós brasileiros não termos acesso à saúde, leva também algumas comorbidades a tornarem as pessoas, pessoas com deficiência. O AVC é uma das causas que mais tornam pessoas com deficiência. Que atingem a população mais pobre por falta de acesso.”

Luciana:Relacionado a emprego, de 2007 a 2019 você vai ter, por exemplo, no máximo 1% das pessoas com deficiência no mercado formal de trabalho. As demais estão no informal, ou totalmente fora recebendo BPC. Ao envelhecer as pessoas têm mais chance de adquirir uma deficiência, e aí vai-se aumentando a pirâmide etária de pessoas com deficiência e sem acesso à saúde. É necessário considerar as diferentes nuances, diferentes realidades no Brasil não tem como.”

Paula: E a sua realidade Lu?

Luciana: “Hoje a minha realidade é bem de boa, já foi bem complicada. Eu moro sozinha, eu trabalho, eu dirijo, eu cuido das minhas coisas da minha casa. É muito bom ter esse nível de independência! Se você perguntasse para a Luciana de 15 anos, ela jamais diria que eu estaria nesse ponto.”

Então o descrédito que você colocou na família passa por vocês também? Até por falta de representatividade e perspectiva.

Luciana: “Com toda certeza.”

Aninha:É o que a gente escuta a vida inteira Paulinha, que você não vai conseguir, não vai chegar lá, ah é difícil para você ir, você tem certeza que você quer isso? É sempre o questionar a nossa capacidade o tempo inteiro. Quando eu parei de andar com 12 anos, as pessoas perguntavam pro meu pai: porque você não aposenta a Anamaria? Graças a Deus meu pai era uma pessoa instruída e acredita que mesmo com a limitação física que eu tinha eu era plenamente capaz de estudar e trabalhar. Sempre ele e a minha mãe me apoiaram muito! Romper a bolha familiar, a primeira barreira, é difícil. É uma enxurrada de crenças que são transferidas para a gente que terminamos nos sabotando, adquirindo síndrome da impostora, por crenças que vêm lá de trás.”

Luciana: Essas percepções do núcleo familiar, normalmente vem de uma forma muito violenta, pela minha experiência. Introjeta aquilo, e passa a acreditar que aquilo é verdade. Na época não tinha recurso para discernir, hoje claramente para mim é entendido como capacitismo. O modelo predominante da deficiência é o modelo médico, que é responsabilidade exclusiva da pessoa se reabilitar, de se inserir, de se aceitar, de ser exemplo de superação. E tudo é responsabilidade da pessoa. Ela que fica com deficiência, ela que se resolve, ela que se aceite, ela que vai lutar, vai reabilitar vai tudo. Essa é uma pesquisa que estamos fazendo com profissionais de saúde, e é recorrente essa fala. A pergunta que hoje precisa ser feita é: tá, você espera isso tudo de uma pessoa com deficiência, mas e se essa pessoa vivesse na sua cabeça, como seria? Ela conseguiria se aceitar, conseguiria viver bem com isso, ela buscaria reabilitação ou se sentiria uma total fracassada? Porque ela tem que buscar um normal que ela nunca vai alcançar! Quando eu parei de andar, as minhas metas eram sempre assim: daqui há 6 meses vou andar, ano que vem vou estar andando, 1 ano vou andar, daqui há 2 anos vou estar andando. Eu passei por uma internação longa, e foi lá que eu conheci a Aninha, ainda mais no ambiente hospitalar sua vida gira só em torno somente disso. O problema é que quando você sai de lá, eu era uma adolescente, eu convivia minimamente com amigos, você passa a ter expectativas que vão além desse modelo: eu queria estudar também, eu queria fazer uma faculdade, eu queria sair de Coronel Fabriciano que é minha cidade. E aí o que vinha é: você não vai dar conta. Eu adoro contar essa história, eu valorizo muito professor, porque quem pagou minha inscrição no vestibular foram meus professores e minha avó. Meu pai dizia: “Filha minha, ainda mais como você, que não anda, não mora fora de casa.” São diferentes dimensões. Eles também falavam para mim: “Você não vai casar, porque homem não cuida.” E são sempre expectativas muito baixas. Você não vai estudar, você não vai trabalhar, você vai ser uma samambaia e ficar aqui só para crescer o cabelo. Você não pode pensar. E eu estava pensando :O que dói mais? O que é mais violento nisso tudo? Aquilo que é mais comum em todos os humanos e aquilo que a gente mais deseja, você sentir que seu corpo por ele ter uma deficiência ele não é digno de amor. E esse amor para mim se traduz em cuidado, preocupação, em querer ouvir o outro, em querer considerar. A minha experiência familiar, foi sempre de muito silenciamento e não consideração das coisas que eu queria. Para mim não foi só se sabotar, e síndrome do impostor. Para mim foi não ter autoestima, não achar que seu corpo e você não são dignos de amor, e você não é digna de ter uma vida boa. Todas as pessoas pensam que sua vida não é digna de ser vivida, que seria melhor se você morresse.

Nossa, sofreu acidente? Morreu? Não, pior, ficou aleijado. Então viver do nosso modo é pior do que morrer.”

Conte mais sobre o ambiente hospitalar e a influência dele na visão de mundo de vocês.

Anamaria:É interessante como o ambiente hospitalar vai fazendo a gente. Hoje eu tenho birra quando me falam para fazer fisioterapia, eu não consigo entrar em uma clínica. Eu conheço e amo vários. Mas a deficiência para essas pessoas está tão relacionada a doença que isso me irrita muito. Eu penso muito em promoção saúde. Quando eu chego em uma academia, as pessoas me olham assustadas tipo: “O que ela está fazendo aqui?” Eu coloco a muleta do lado e vou malhar e as pessoas me olham aterrorizadas, porque o corpo torto não é bem visto na nossa sociedade.”

Luciana:Tipo, você vai para a academia para ter um corpo perfeito, se o seu corpo não é perfeito para que você vai? Eu tinha fisioterapeutas que me estimulavam a fazer coisas além de somente pensar em voltar a andar, mas a maioria pensa somente na cura.”

Anamaria: “A pergunta que a gente mais escuta é: quando você vai largar as muletas? Quando você vai largar essa cadeiras de rodas Lu?”

Luciana: “É que você é tão bonitinha para estar na cadeira. E eu demorei muito para entender isso Paulinha, tipo, Não, meu corpo é digno de amor sim, eu posso sair de casa. É chato ser tão notada, mas foda-se. É chato ser único, é chato ser pioneiro, muito chato. “

Em contrapartida tem toda uma importância da trajetória de vocês dentro dos percentuais e de toda representatividade, porque as pessoas chegam onde vocês estão é uma abertura também um modelo de referência, de uma caminhada que começa por vocês. A abertura de caminhos é sempre um caminho muito duro, ser o primeiro é exaustivo, você tem que explicar, você tem que ensinar, você tem que aprender por si só, você tem que ensinar os outros, tem que ensinar quem não quer aprender e finge que quer.

Luciana:E é uma solidão muito grande. No hospital éramos eu a Aninha e mais uma pessoa da nossa faixa etária, as demais eram 50+. Na escola eu era a única. Na UFMG, éramos 2. Atualmente as cotas estão bombando, outra realidade, deve ser legal ter gente para conversar, dividir a realidade.”

Anamaria: “Aí você pensa em acessibilidade, a universidade tinha uma moradia preparada totalmente acessível com esse número de pessoas incluídas morando lá.”

O que é Capacitismo?

Luciana: “É o preconceito relacionado à pessoa com deficiência. São essas crenças relacionadas a capacidade, por isso o nome é capacitismo. É você ter a idéia de um corpo extremamente capaz e aquilo que não corresponde a essa ideia.”

Anamaria: “É isso, e o que é legal entender é de onde surge dentro do movimento de pessoas com deficiência surge a palavra que você do inglês “able”. E no Brasil ele é novo, a gente escuta a pouco tempo, no mundo corporativo, 2018,2019. Quando você pensa mundialmente vem desde 1980. Tudo nosso está relacionado ao corpo, a nossa biomecânica, e a gente é muito mais que um corpo, a gente é biopsicosocial se a gente for parar para pensar para o todo. Hoje eu entendo que a deficiência está no meio, não em mim. Não quer dizer também que em algum momento eu não sou ou não fui capacitista. Por que o capacitismo por ele ser um preconceito, ele também está sendo estruturado através dos nossos vieses, que vem do nosso biológico, cultural, a gente também tem que quebrar os nossos preconceitos sobre pessoas com deficiência e sermos pessoa com deficiência.”

Luciana: “Na pesquisa desde de 2012. O termo transmite a ideia de corpo hábil. “

Passabilidade, invisibilidade, referência e história de superação. Qual é o real valor que os méritos e talentos realmente têm e são reconhecidos frente a portabilidade da deficiência?

Anamaria: Pergunta complexa, mas a passabilidade para mim ficou muito nítida essa questão, porque andei de muleta dos meus 12 aos 15 anos aproximadamente, e com as cirurgias, eu parei de andar de muleta e andava, mancando como se estivesse com o pé machucado. Então eu era a pessoa com deficiência queridinha das empresas, não era vista como uma pessoa com deficiência pro detran por exemplo, emissão de carteira especial, compra de carro, e para as pessoas na rua também. Em 2015, quando eu fiz a cirurgia que teve a intercorrência e eu perdi o movimento da perna esquerda eu nunca mais larguei as muletas, e com isso eu senti essa pressão da passibilidade, porque o olhar para mim na rua era diferente. Eu gosto de contar isso, porque é real, a questão da invisibilidade, por exemplo, estava com uma pessoa em uma loja de roupas íntimas femininas, e a pessoa perguntou para o meu acompanhante o que eu iria querer. E a pessoa respondeu: “pergunta para ela, ela que vai comprar.” Você passa a ser invisível em todos os momentos. Eu sempre fui uma pessoa baladeira, namoradeira, e pegava para caramba, essa era a verdade. Quando eu passei a usar muletas, se eu estava sentada em uma mesa de um restaurante, as pessoas te olham, te paqueram, a hora que você levanta para ir ao banheiro a pessoa para de te olhar, cria uma barreira gigantesca. Você passa a ser invisível para vários contextos no mundo no dia a dia. Eu estava na esplanada do mineirão com a minha bicicleta, e somente eu com minha handbike, estou andando várias pessoas olhando, e uma pessoa perguntou para a minha colega como que fazia para andar. Minha colega respondeu: “Pergunta para ela.” Você passa a ser invisível porque você anda de uma maneira que não é normal para o mundo.

É cansativo, ser referência, história de superação. Eu não sou exemplo de nada e para ninguém. Me incomoda muito. Isso prova cada vez mais que a gente tem que ficar provando nossa capacidade. Sempre que uma pessoa fala isso eu penso: “Eu só vivo minha vida, mais nada.” Que eu sou exemplo por morar sozinha, e no caso só tenho uma maneira diferente de fazer minhas atividades: tomo banho assentada, cozinho assentada, limpo minha casa assentada. Sou uma pessoa. Se eu olho pro mercado de trabalho, eu acho que não recebo meus méritos, eu luto mais que necessários para progredir. Se eu olho para a minha família, no caso minha mãe me parabeniza pelas minhas conquistas, as demais pessoas não. As nossas vitórias e conquistas não são festejadas como deveriam ser, apesar de falarem de história de superação e exemplo.”

Luciana: “Passabilidade para mim é complicado porque não tenho nenhuma, mas pelo o que eu estudo tudo que a Aninha falou está certo. As empresas tendem a contratar pessoas que tenham deficiências mais leves ou que não tenham necessidade de adaptação, essa é a maior preferência. Então provavelmente no mercado privado minhas dificuldades seriam maiores, e por isso foi uma escolha consciente minha de ir para o serviço público. Eu sinto invisibilidade toda vez que eu chego em um lugar que não tem como eu entrar, não tem como eu usar o banheiro, não tem como eu me locomover minimamente, que aí é como se eu não existisse mesmo. Sobre ser referência e história de superação, e o que é interessante sobre superação são as pessoas falarem; “Ah ela superou a deficiência!” Que diabos quer dizer isso para você? Que ela consegue minimamente desenvolver a vida dela apesar de ter uma deficiência? As pessoas tem uma ideia que a boca só pode ser usada dessa forma, a mão só pode ser usada dessa forma, e a partir do momento que você não está cumprindo o rito do que seria normal para aquela função do corpo você passa a ser visto como anormal. Profissionalmente hoje eu me sinto reconhecida, principalmente pela liderança que tenho hoje. Minhas lideranças anteriores só enxergavam a minha cadeira, o objeto. Eu não acredito em história de superação eu acredito em políticas públicas, com oportunidade todas as pessoas podem se desenvolver.”

Pressão de gênero, relação de cuidado e portabilidade de deficiência. Como vocês entendem essa correlação?

Anamaria: “A mulher com deficiência têm isso muito forte. O homem com deficiência quando casa é o cara, a gente o cônjuge é um anjo, é uma pessoa cuidadora. Minha mãe sempre me falou que eu tinha que casar e ter filhos para cuidarem de mim. “

Paula: “Essa expectativa da mulher de casar e ter filhos como forma de ser bem sucedida é algo da sociedade, da crença religiosa. E parece que a gente evoluiu mas na real não evoluímos. As famílias ainda estão arraigadas no tradicional, e esperando o tradicional e criando os filhos para o tradicional. “

Luciana: “E eu acho isso muito cruel porque é como se a gente só pudesse ter planos para um homem, cuidar da casa dele, ter filhos dele. Eu não posso ter minha vida, meu apartamento, minha carreira? E de forma que isso não esteja ligado a um homem, porque eu não preciso disso para assegurar minha existência. Por mais que você conquiste não está bom porque não tem a figura masculina.”

Paula:Eu me sinto super representada na sua fala. Eu sou uma mulher casada, e as perguntas nunca acabam a cada passo que damos. Existe uma expectativa padrão de namoro, casamento, filhos, casa. No caso de vocês ainda entra a questão da deficiência que potencializa bastante.

Luciana:Nesse caso, é como se a deficiência reforçasse minha fragilidade, a fragilidade do meu gênero. Por eu ser uma pessoa com deficiência preciso de mais cuidados. Eu fico revoltada. Todo mundo precisa de alguém em alguma fase da vida em algum momento. Nenhum momento você é totalmente independente. Você precisa que alguém construa sua casa, produza sua comida, pavimente a rua que você dirige seu carro. No nosso caso, quando precisamos acessar esse cuidado é tido como um super favor. Quando eu faço para os outros é okay, normal, se fazem para mim: “Nossa, a Lu precisa disso!”. Porque é diferente?”

Paula: “A gente vem de uma construção de sociedade cada vez mais egoísta, e querendo ou não a cultura do cuidado é sobre infância e terceira idade, que no caso da terceira idade ao meu ver já está caindo por terra porque vemos muitas pessoas sem apoio e é impressionante. Existe algo que diz para a gente que a gente consegue viver uns sem os outros, e isso é a maior mentira que contaram para a gente, que a gente vai crescer, vai ter dinheiro, vai ser independente e não vai precisar de ninguém. E desde que o mundo é mundo, ser humano é humano, e a gente faz parte de uma natureza, um sistema que um depende do outro o tempo todo.”

Luciana: “A gente chama isso da lógica da interdependência, somos dependentes, precisamos dos outros. Isso dilui essa questão que somente pessoas com deficiência precisam de cuidados, precisa de ajuda. Você passa a entender que todos precisam. “

Nova política nacional para educação especial. O que é e qual a opinião de vocês sobre essa proposta? Ela promove inclusão ou segregação ?

Luciana: “Nova política de educação especial que não é na perspectiva de educação inclusiva. A gente ainda tem preconceitos, e dificuldades no mundo corporativo hoje e é um reflexo de como era a educação no nosso tempo. A política de educação especial que considera a educação inclusiva é de 2007, 2008 e até então não tinha nada que colocasse que escolas regulares tinham que receber alunos com deficiência. Antes era só uma educação mais segregada, e como reflexo temos dentro das empresas pessoas acreditando que cegos e surdos não podem trabalhar por um total desconhecimento da realidade dessas pessoas. Eu nunca estudei em escola especial e para a minha formação foi super importante, mesmo não tendo sido fácil por barreiras físicas. A escola não era adaptada, tinha escadas, não participava da educação física. A proposta atual promove segregação, porque as pessoas deixam de conviver e consequentemente deixam de conhecer, deixam de aprender, deixam de ver o outro como ser humano, e passam a ver como pessoas que tem que estar apartadas.”

Anamaria: Concordo em gênero, número e grau. Eu também não estudei em escola especial, sempre estudei em escola pública, eu era a única pessoa com deficiência da escola. Minha sala estava no alto, tinha escada e tinha uma rampa. As moças que cuidavam da entrada dos alunos tinham a chave e sempre alegavam que perderam a chave da rampa, e os meus colegas me carregavam até a sala. Olha o desconforto, tinha que permitir alguém me tocar, para conseguir acessar a sala, não podia ir ao banheiro sem ajuda. Depois de um tempo passei a não descer, e minha turma deixou de descer como forma de manifestar pela abertura da rampa para mim. Nunca se ensinou na escola, em educação física, esportes que incluem pessoas com deficiência. Em 2007, eu estava trabalhando em uma escola especial que ao saberem do decreto, temeram pelos empregos porém a grande oportunidade era a inserção de todas as crianças na sociedade com uma troca que só iria acrescentar a todas. Seria um grande retrocesso se essa separação acontecesse novamente.”

Luciana: “Um retrocesso de pelo menos 30 anos. Isso é inconstitucional. Mesmo com o que temos hoje ainda temos escolas que recorrem para não receberem as crianças na sua escola, se sentem confortáveis para não matricularem os alunos. Alegam que a escola não está preparada.”. A escola é lugar de intervenção, mas não é lugar de tratar clinicamente ninguém. A experiência prévia de convivência prepara muito as pessoas para por exemplo estar preparado para dividir um trabalho e conviver minimamente.”

O que uma pessoa sem deficiência faz pela causa que a torna aliada nesta luta? E porque são importantes as pessoas aliadas? Como podemos avançar nessa pauta como sociedade?

Anamaria: “Pessoas aliadas, porque tem que existir? Seria muito mais legal se não existisse preconceito. Mas enfim, o que elas podem fazer pela causa, assim como a gente fala muito sobre homens falarem para outros homens sobre mulheres é uma pessoa sem deficiência falar sobre pessoa com deficiência para outra pessoa sem deficiência, explicar porque deve entender sobre capacidade, porque não deve julgar. Infelizmente a nossa sociedade ainda escuta mais pessoas sem deficiência do que as com deficiência, por isso elas são tão importantes na nossa luta. É importante ser crítica, observar a condição dos banheiros nos restaurantes, que não devem ser depósitos, devem ter perfeitas condições de utilização. Assim como meu amigos, que hoje entendem perfeitamente a importância da vaga reservada no estacionamento por conviverem comigo. É muito bom quando estamos com pessoas que mostram para a sociedade que é importante incluir, com leveza. Aciona o sistema e defende os direitos quando percebe alguém desrespeitando.”

Luciana: “Eu concordo muito com a Aninha. Eu acho que as pessoas que são aliadas podem ajudar cobrando as coisas que são direito e não estão sendo cumpridos, inclusive o espaço de aprendizado inclusivo. No mundo corporativo, ou na escola, quando você encontra uma pessoa aliada faz tudo ser mais leve. Uma pessoa que acredita no nosso potencial, apesar da condição que estivermos inseridos faz toda diferença. As pessoas podem deixar de usar expressões preconceituosas como: “Que mancada!, “É melhor ouvir isso que ser surdo.”, “Vamos fazer a quatro mãos.”, são muitas. Repensar isso é legal, repensar as práticas de individualizar a questão da deficiência, que a pessoa que tem que tudo, buscar, se inserir, reabilitar. “

Anamaria: “Enxergar o seu privilégio de não ser uma pessoa com deficiência, e se abre para entender o que é ser uma pessoa com deficiência eu acho que você passa a se tornar uma pessoa aliada. Você olha para os direitos, mas você olha a gente como pessoa: É a Aninha! A Lu!”

Luciana:Não é a Lu da cadeira, a Aninha da muleta! Nos enxergar além disso. Eu convivo com uma criança autista, e ela com 7 anos sabe distinguir muito bem quem aceita ela como ela é. Inclusive ela demonstra preferência por conviver com essas pessoas. Se uma criança de 7 anos é capaz, imagina a gente com todo repertório de vida? É muito claro para a gente quando a pessoa está nos desmerecendo, e o quanto é bom ter pessoas que realmente vão além disso.”

Anamaria: “Os meus sobrinhos me enxergam como eu sou, eu comecei a usar muletas eles tinham 1 e 2 anos, essa pureza, humildade da criança precisava ser mantida. Esse lugar de aprender com o outro, perguntar diretamente quando tem dúvida.”

Luciana:Meus primos brincavam comigo e pediam: “Prima, você já andou muito, agora é a minha vez de andar de cadeira.” Meu outro primo recente me pediu para fazer um aúdio para ele enviar no grupo da escola dele sobre vida sexual de pessoas cadeirantes, porque estava rolando uma discussão sobre não ser possível isso. Super natural.”

O que vocês deixam para quem estiver nos lendo de mensagem final, convite, provocação ou recomendação. Vocês tem alguma referência, que inspiram vocês?

Luciana: “O principal convite é para nos conhecer. Aproximar da nossa realidade e entender que temos dor de dente, enxaqueca, dor de cotovelo, a gente sofre de ansiedade com relação ao emprego. A nossa vida não é só relacionada ao que as pessoas entendem como falta, é uma vida complexa como a de todo mundo. Rumo a desmistificar as crenças de que é algo separado.”

Anamaria: “Convido para as pessoas se abrirem, fazerem o teste do pescoço nos ambientes que frequentam: “Quantas pessoas com deficiência estão naquele lugar?” Ter uma crítica maior sobre nosso país. Ter conhecimento é ponto de partida para a mudança, se permitam. Sigam pessoas em rede social, leia livros sobre pessoas com deficiência. Livros: Empoderando pessoas com deficiência, Capacitismo do Victor de Marco. Procurem aprender! Não se sintam culpados por terem sido privadas da convivência, mas é hora de questionar o porquê dessa privação.”

Luciana: Não somos especiais, não somos exemplo de superação. Temos mais dificuldade de viver no Brasil por termos ainda menos políticas públicas.”

Anamaria: Como diz Belchior: “Amar e mudar as coisas.”

Luciana:Belchior é tão perfeito que primeiro ele fala: “A minha alucinação é suportar o dia a dia.” Assim como para a gente, suportar o dia a dia é uma alucinação.”

Anamaria:E sobre referência, minha pessoa preferida no mundo está aqui, falando com a gente a Lu.”

Luciana:A Aninha também é minha referência, minha companheira de vida. E outra pessoa é a Debora Diniz, que trouxe a discussão da sociologia da deficiência para o Brasil no livro dela: O que é deficiência de 2007. Recomendo a leitura dela para começar a entender.”

Anamaria: “Também admiro muito a Tabata Contri da Talento Incluir, eu tive o privilégio de conhecê-la e me fez muita diferença na forma de me comunicar.”

Para você que chegou até aqui, nosso muito obrigado.

“ Incluir significa promover e reconhecer o potencial inerente a todo ser humano em sua maior expressão: a diferença.”

Que possamos seguir evoluindo como humanidade indo além de fazer a nossa parte, entendendo principalmente a importância de cada pessoa e suas capacidades como parte da construção do todo como sociedade.

Seguem os contatos das convidadas para possíveis trocas: Luciana (lucianadrumondalmeida@gmail.com) e Aninha (no insta siga: viver_com_muletas).

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Paula Rosa Campos

Construindo realidades e pontes. “Escrever é minha musculação da alma.” Ana S.